sábado, outubro 22, 2005

City, Movie Script Ending, Yume e ela


Nem todo novo dia começa de manhã. Sair da cama e sonambular acordado rumo a “mais do mesmo”, sem vontade de gritar. Não se lembrar dos sonhos é frustrante, embora vez ou outra seja melhor. Alguns sonhos tomam-nos mais do que a noite, deixam aquela dorzinha, uma tristeza lá no fundo. Parecido com aquele tipo de coceira que a gente coça mas parece que não está coçando, não é fácil achar o lugar certo de onde ela vem. Passamos então o resto do dia pintados com a cor daquele sonho, preto, vermelho, azul.

A rua anda de mau-humor ultimamente. Esse calor pobre, sem espírito. Não serve para absolutamente nada de proveitoso. As cores dos muros, paredes com janelas, letreiros de lojas, carros, tudo sem graça. A quantidade de luz deveria realçar, dar contraste, mas não se parece com isso. O ar seco, estúpido, nem venta. Ficamos num clima que, a mim, me parece o interior de um vidro de maionese velho, fechado. Há muito constrangimento no suor, tira-nos um pouco da dignidade. Roupas bonitas, penteados, sapatos. Tudo suado e sem muito sentido. Nessa época do ano, aqui, a beleza das pessoas fica feia e suada. A rua anda de mau-humor.



O pior é que eu nem sei o que dizer a ela. Acho que o Marlon Brando não cabe, nem gordo como o Elvis. Hans Solo, talvez, mas isso já seria clichê demais. Bonito seria se coubesse James Bond. Não. Não há ação suficiente pra isso. Um exagero em tom de Romeo seria efetivo, mas desonesto e muito pouco criativo. Don Juan? Não funciona nesse tipo de mulher. Frank Sinatra, “behind blue eyes”, dizendo: você não quer problemas, não me quer. ... A gente aprende muito no cinema. Anda faltando um bom roteiro e a direção, insossa, não cria as deixas. Queria poder não dizer nada, como um Don Michael, só dar aquela olhada que interromperia até o carnaval. Vontade mal-criada, dizer apenas “Huuá!” e sumir. Mas ambos não são possíveis pelo ordinário fato de eu não ser o Pacino.

Neste momento (um bem grande) seria necessária muita energia para mover a minha massa, arrastando comigo tudo que está encadeado e preso atrás de mim. Alguém-algo que tivesse cores vivas e abraçadas numa imagem bela, uma melodia inspirada, com altos e baixos e um solo de guitarra no meio (por que não?). Que viesse com olhos bonitos e que sabem falar. Um cheiro que, às vezes, de travesseiro, às vezes, de beber e dançar a noite toda. Que me soubesse fazer rir, desprevenido, e chorar, sempre. Me provocasse nervos à flor da pele e me acolhesse no sono, tão caro. Parece coisa de filme, mas existe, eu já vi esse filme. Não passa mais, porém. Nem de madrugada.

Agora, nem ela, nem filme, nem nada. Eu. Nesse calor tudo fica feio, sem graça e suado. Além do mais, embora eu não me lembre, não sonhei com ela essa noite. Nunca sonhei com ela.

sábado, outubro 08, 2005

Fratura


fraturaa Posted by Picasa

E assim, me quebrei.Fratura instável do terço distal da clavícula direita com rompimento dos ligamentos trapezóide e conóide do ligamento coracoclavicular. Conduta de urgência: reparação cirúrgica da lesão, com redução da fratura associada a colocação de aste axial. Recomenda-se também a feitura de amarrilhas ao processo coracóide da escápula.
Mas não corri, não voltei... Queria estar com meus amigos.
De início a dor era bem suportável e cheguei a não acreditar na fratura. Chegando ao hospital, por volta de 20 minutos depois, a dor alcançou minha cabeça. Senti dores fortes. Medicado, fui ao Raio X. Diagnóstico imaginológico: "Parabéns, quebrou mesmo!" (Ah, médico velho!). Escoltado por meu fiel companheiro Hugão, rumamos para Anápolis no carro de outro grande parceiro: Murilão, a múmia com solitária (relaaaaaaxa, véi!). Meu acompanhante e eu chegamos e nos perdemos na cidade. Após passarmos por dois hospitais, fui admitido no Hospital Evangélico. Em seguida, recebi um prognóstico tão generoso quanto o médico que me atendeu. Oito de gesso colocado pelo Sr. João Alves , alivie-me em voltar.
E, na Pousada dos Pirineus, permaneci tanto quanto todos (mais até, perdi o passeio à cachoeira). Sob o efeito de aceclofenaco, Brahma Extra, amigos engraçadíssimos e a cara compania de uma pessoa muitíssimo interessante (vc mesma!), usufrui das diárias já pagas, refeições e etc. Excetuando detalhes menores como a dor, os banhos complicados e as noites em claro, me diverti muito.
Ao fim de tudo isso, penso, convicto, que lucrei. Descobri facetas inesperadas e cativantes de convives, alguns deles dos quais conhecia meramente a face. Confirmei certezas sobre amigos muito queridos e sobre mim mesmo. Muito disso, começando com um golpe de azar tremendo, com o qual aprendi sobre companheirismo, empatia, dignidade (em momentos de dificuldade), Pirenópolis, fraturas, analgésicos opióides, Anápolis, meu talento em quadras de vôlei, meu braço esquerdo e Induísmo. Diante de tanto, não me admiro em lembrar de passeios à pé na acidentadíssima cidade, "gato mia" e momentos de varanda e rede, nos quais me esqueci completamente de que meu ombro direito estava, oficialmente, fudido!

Dez segundos

Do alto do prédio, todo o vão entre meu corpo e a calçada, lá em baixo, me era tão indiferente quanto deveria ser para o concreto que me aguardava. Uma noite fria, dessas de começo de inverno, frio meio inesperado. Não se tratava de um arranjo planejado mas, ao que me parece, devido ao frio, não havia ninguém para assistir. Menos mau. De passos mecânicos, quase involuntários, ganhei os metros finais entre a porta do terraço e a borda do edifício. Sem últimos pensamentos, desejos ou medos (esses que fiquem aqui junto com esse mundo ao qual rejeitei em definitivo), nem me contive no pequeno para-peito (para-joelho?). Com uma das pernas desgraçadas, de um impulso, ergui-me na beira. Nessa inércia, sem mover nem mais um músculo, precipitei meu corpo velho de lá. Um que me observasse no momento poderia mesmo ter certeza de que andei como se não soubesse que, para o próximo passo, não havia mais chão. Assim lançou-me minha perna (creio que a direita) rumo aos dez segundos.


Segundo 01: Assim que senti o espaço imenso ao meu redor, meu corpo apavorou-se autonomamente. Eu não. Dali à diante, me diria um espectador do corpo em queda livre.


Segundo 02: Por mais que lhes faltassem os comandos, braços, pernas e pescoço começaram a debater-se. Eu sentia os movimentos, não os executava. Dos olhos chegavam-me imagens embaçadas da rua, da parede intercalada de janelas, dos outros prédios. Apesar do grande alvoroço mecânico de meu corpo, tudo passava lentamente, como se me fora dado tempo para ponderar o inevitável.


Segundo 03: Já capaz de ignorar a luta de meus músculos, aflitos em tentar alcançar algo a que pudessem me agarrar, era possível sentir o ar me atingindo, cada vez mais forte, como um vento de baixo pra cima. Era bom. Minha pele, muito fria, oferecia-me algo que, de tão vivo, era quase hilário (tendo em vista o chão a me convocar, inegociavelmente).


Segundo 04: Lúcido, ocorreu-me a iminência da morte. Pois sim, estava cansado, sem mais um átimo de vontade, vencido. Desejava o fim. De súbito, porém, a igualdade fim = morte chocou-me. Não diria que medo, mas a sensação de estar perdido, a irredutibilidade do desfecho alcançou-me, violenta.


Segundo 05: Este não tenho como descrever pois, de tão grande, ocuparia todo o resto. Toda essa multidão de sensações, imagens, cheiros, sabores, pessoas e lugares são meus. Não os dividirei com ninguém.


Segundo 06: O cabelo dela. Liso, castanho, perfumado, longo. Entre meus dedos a percorrê-los desde o alto da cabeça até as pontinhas meio quebradas. Ela não gostava que tocassem seus cabelos mas, em momentos de conveniência, era esse o presente que me dava. Tudo mais se atropelando naquela queda mortal e a imagem de meus dedos percorrendo seus cabelos não abandonou-me. Permaneceu ali até o fim, como um plano de fundo.


Segundo 07: Um gosto amargo, desses que não se sente com a língua, acometeu-me. Um caldo grosso de frustração, derrota e ressentimento. Arrependia-me? Não sei dizer. Parece-me agora que tal angústia, de inevitável, já possuía seu lugar naquele momento desde que resolvi morrer. Aceitei, digeri. Resignado? Não mais importava, a calçada já olhava-me nos olhos.


Segundo 08: A pouco mais de um metro do chão (note-se a estupidez da medida) meus braços estenderam-se, ao mesmo tempo em que minhas pernas, dobrando-se, colocaram meus joelhos à minha frente. Era a última tentativa de meu corpo de sobreviver e, de tão inútil, foi patético. Sem que a menor diferença provocassem, meus olhos se fecharam (já que não estava vendo com eles há alguns metros/segundos). Tocou-me as palmas das mãos o ladrilho do passeio.


Segundo 09: A maçã de Newton. Toda a minha estatura, próxima à horizontal, ventre voltado para o chão, uniu-se num só golpe à calçada. Doeram-me todas as partes doloríveis (que não se exija às aspas que cerquem neologismos no momento da morte) ao mesmo tempo, muito rapidamente. Braços e pernas, adiantados ao torço, logo uniram-se à massa de carne, osso, sangue e miolos que sujou o caminho dos pedestres ali. E bem ali disse adeus àquilo que fora meu corpo.


Segundo10:........

Agora

Este, agora, levanta-se do ócio produtivo... mais da decisão consciente de me agraciar com tempinho pra mim mesmo.

Vamos lá. Que essa fadinha de inspiração não me abandone por alguns minutos, ao menos quero terminar o texto. Exercício que imagino ser meu (mas que deve ter muitos donos, escritores de hábito), vamos aqui tentar coagular com coesão as imagens, sons e abstrações outras que me estorvam o ordinariozinho de livro-prova do dia. Dizem que é simples, basta amarrar com vocabulário cuidadoso e referências da erudição ocidental. Não creio, porém. Parece-me mais uma necessidade, uma dessas das quais não nos atentamos sem que isso doa, faça faltar o ar ou provoque cólicas intestinais. A tentativa de construção cartesiana de algo que já existe, pulverizado em humor instável e conclusões felizes e infelizes. Que tome corpo o texto então. Assim, livre, do agora.
Atinge-me, na cara, o agora. Vem incrustado de acúleos (não falamos grego?) do antes. Não é lindo como forma-se a adversão entre o “sou hoje” e o “era”? Não conheço, na minha humildade material de carbono, nitrogênio, hidrogênio e oxigênio, algo que possua plasticidade par em relação à mente de um homem acordado. Traz problemas, claro, mas aceito a condição. Não fosse assim, que beleza existiria, se nós é que separamos o belo do mundano, de pé em nossa situação de espírito do momento? Einstein se revire no túmulo, mas há algo mais universal que o relativismo humano? Nem o espaço-tempo, nem os buracos de minhoca e as onze dimensões (precisamos encontrar a cura para as distrofias musculares) compartilham de imensidão caótica maior do que a simples condição humana. Somos paredes, de cimento chamado tempo e tijolos muitos, cada um trocando de lugar e se renovando constantemente. Os juízos, valores e certezas dançam, escusos, seduzindo-nos a cada dia. Alguns ficam. Estes, porém, fugitivos da consciência do super-ego, sentam-se em nossas vidas, não sendo isso uma escolha. Conclusão angustiante, mas de uma beleza que, tão grande, “sinto que meu coração vai explodir”.
Seguem-se, pois, as definitividades cotidianas, uma a uma. Vivamos essa somatória (Σ) sem fim, antes dos 80 ou 90 anos para os sortudos, disciplinados ou não. Antes a discrepância dissonante entre acordes velhos e novos do que a falta do meu violão.

PA

P.S.: É verdade, o vocabulário e as referências banais ajudam. No final eu não conhecia esse texto há uns 20 minutos atrás. Agora, me parece meu.