sábado, outubro 08, 2005

Dez segundos

Do alto do prédio, todo o vão entre meu corpo e a calçada, lá em baixo, me era tão indiferente quanto deveria ser para o concreto que me aguardava. Uma noite fria, dessas de começo de inverno, frio meio inesperado. Não se tratava de um arranjo planejado mas, ao que me parece, devido ao frio, não havia ninguém para assistir. Menos mau. De passos mecânicos, quase involuntários, ganhei os metros finais entre a porta do terraço e a borda do edifício. Sem últimos pensamentos, desejos ou medos (esses que fiquem aqui junto com esse mundo ao qual rejeitei em definitivo), nem me contive no pequeno para-peito (para-joelho?). Com uma das pernas desgraçadas, de um impulso, ergui-me na beira. Nessa inércia, sem mover nem mais um músculo, precipitei meu corpo velho de lá. Um que me observasse no momento poderia mesmo ter certeza de que andei como se não soubesse que, para o próximo passo, não havia mais chão. Assim lançou-me minha perna (creio que a direita) rumo aos dez segundos.


Segundo 01: Assim que senti o espaço imenso ao meu redor, meu corpo apavorou-se autonomamente. Eu não. Dali à diante, me diria um espectador do corpo em queda livre.


Segundo 02: Por mais que lhes faltassem os comandos, braços, pernas e pescoço começaram a debater-se. Eu sentia os movimentos, não os executava. Dos olhos chegavam-me imagens embaçadas da rua, da parede intercalada de janelas, dos outros prédios. Apesar do grande alvoroço mecânico de meu corpo, tudo passava lentamente, como se me fora dado tempo para ponderar o inevitável.


Segundo 03: Já capaz de ignorar a luta de meus músculos, aflitos em tentar alcançar algo a que pudessem me agarrar, era possível sentir o ar me atingindo, cada vez mais forte, como um vento de baixo pra cima. Era bom. Minha pele, muito fria, oferecia-me algo que, de tão vivo, era quase hilário (tendo em vista o chão a me convocar, inegociavelmente).


Segundo 04: Lúcido, ocorreu-me a iminência da morte. Pois sim, estava cansado, sem mais um átimo de vontade, vencido. Desejava o fim. De súbito, porém, a igualdade fim = morte chocou-me. Não diria que medo, mas a sensação de estar perdido, a irredutibilidade do desfecho alcançou-me, violenta.


Segundo 05: Este não tenho como descrever pois, de tão grande, ocuparia todo o resto. Toda essa multidão de sensações, imagens, cheiros, sabores, pessoas e lugares são meus. Não os dividirei com ninguém.


Segundo 06: O cabelo dela. Liso, castanho, perfumado, longo. Entre meus dedos a percorrê-los desde o alto da cabeça até as pontinhas meio quebradas. Ela não gostava que tocassem seus cabelos mas, em momentos de conveniência, era esse o presente que me dava. Tudo mais se atropelando naquela queda mortal e a imagem de meus dedos percorrendo seus cabelos não abandonou-me. Permaneceu ali até o fim, como um plano de fundo.


Segundo 07: Um gosto amargo, desses que não se sente com a língua, acometeu-me. Um caldo grosso de frustração, derrota e ressentimento. Arrependia-me? Não sei dizer. Parece-me agora que tal angústia, de inevitável, já possuía seu lugar naquele momento desde que resolvi morrer. Aceitei, digeri. Resignado? Não mais importava, a calçada já olhava-me nos olhos.


Segundo 08: A pouco mais de um metro do chão (note-se a estupidez da medida) meus braços estenderam-se, ao mesmo tempo em que minhas pernas, dobrando-se, colocaram meus joelhos à minha frente. Era a última tentativa de meu corpo de sobreviver e, de tão inútil, foi patético. Sem que a menor diferença provocassem, meus olhos se fecharam (já que não estava vendo com eles há alguns metros/segundos). Tocou-me as palmas das mãos o ladrilho do passeio.


Segundo 09: A maçã de Newton. Toda a minha estatura, próxima à horizontal, ventre voltado para o chão, uniu-se num só golpe à calçada. Doeram-me todas as partes doloríveis (que não se exija às aspas que cerquem neologismos no momento da morte) ao mesmo tempo, muito rapidamente. Braços e pernas, adiantados ao torço, logo uniram-se à massa de carne, osso, sangue e miolos que sujou o caminho dos pedestres ali. E bem ali disse adeus àquilo que fora meu corpo.


Segundo10:........

2 Comments:

Blogger mundosdevidro said...

bao esse seu conto viu, já te disse

8:28 PM  
Blogger mundosdevidro said...

caraca o emilio santiago comento no seu blog!

8:59 PM  

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