quinta-feira, junho 21, 2007

Serviço de Utilidade Pública

Não é costume meu postar coisas 'não-minhas'. Nem vai passar a ser, creia-se. Impossível, porém, não tentar que mais pesoas conheçam o poema que segue, de Fernando Pessoa. Se me repreenderiam por julgar humanitária esta iniciativa, ao menos de utilidade pública é. Não arredo mais que isso.
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Num meio-dia de fim de primavera

Tive um sonho como uma fotografia.
Vi Jesus Cristo descer à terra.
Veio pela encosta de um monte
Tornado outra vez menino,
A correr e a rolar-se pela erva
E a arrancar flores para as deitar fora
E a rir de modo a ouvir-se de longe.
Tinha fugido do céu.
Era nosso demais para fingir
De segunda pessoa da Trindade.
No céu era tudo falso, tudo em desacordo
Com flores e árvores e pedras.
No céu tinha que estar sempre sério
E de vez em quando de se tornar outra vez homem
E subir para a cruz, e estar sempre a morrer
Com uma coroa toda à roda de espinhos
E os pés espetados por um prego com cabeça,
E até com um trapo à roda da cintura
Como os pretos nas ilustrações.
Nem sequer o deixavam ter pai e mãe
Como as outras crianças.
O seu pai era duas pessoas
Um velho chamado José, que era carpinteiro,
E que não era pai dele;
E o outro pai era uma pomba estúpida,
A única pomba feia do mundo
Porque não era do mundo nem era pomba.
E a sua mãe não tinha amado antes de o ter.

Não era mulher: era uma mala
Em que ele tinha vindo do céu.
E queriam que ele, que só nascera da mãe,
E nunca tivera pai para amar com respeito,
Pregasse a bondade e a justiça!

Um dia que Deus estava a dormir
E o Espírito Santo andava a voar,
Ele foi à caixa dos milagres e roubou três.
Com o primeiro fez que ninguém soubesse que ele tinha fugido.
Com o segundo criou-se eternamente humano e menino.
Com o terceiro criou um Cristo eternamente na cruz
E deixou-o pregado na cruz que há no céu
E serve de modelo às outras.
Depois fugiu para o sol
E desceu pelo primeiro raio que apanhou.

Hoje vive na minha aldeia comigo.
É uma criança bonita de riso e natural.
Limpa o nariz ao braço direito,
Chapinha nas poças de água,
Colhe as flores e gosta delas e esquece-as.
Atira pedras aos burros,
Rouba a fruta dos pomares
E foge a chorar e a gritar dos cães.
E, porque sabe que elas não gostam
E que toda a gente acha graça,
Corre atrás das raparigas pelas estradas
Que vão em ranchos pela estradas
com as bilhas às cabeças
E levanta-lhes as saias.

A mim ensinou-me tudo.
Ensinou-me a olhar para as cousas.
Aponta-me todas as cousas que há nas flores.
Mostra-me como as pedras são engraçadas
Quando a gente as tem na mão
E olha devagar para elas.

Diz-me muito mal de Deus.
Diz que ele é um velho estúpido e doente,
Sempre a escarrar no chão
E a dizer indecências.
A Virgem Maria leva as tardes da eternidade a fazer meia.
E o Espírito Santo coça-se com o bico
E empoleira-se nas cadeiras e suja-as.
Tudo no céu é estúpido como a Igreja Católica.
Diz-me que Deus não percebe nada
Das coisas que criou —
"Se é que ele as criou, do que duvido" —
"Ele diz, por exemplo, que os seres cantam a sua glória,
Mas os seres não cantam nada.
Se cantassem seriam cantores.
Os seres existem e mais nada,
E por isso se chamam seres."
E depois, cansados de dizer mal de Deus,
O Menino Jesus adormece nos meus braços
e eu levo-o ao colo para casa.

Ele mora comigo na minha casa a meio do outeiro.
Ele é a Eterna Criança, o deus que faltava.
Ele é o humano que é natural,
Ele é o divino que sorri e que brinca.
E por isso é que eu sei com toda a certeza
Que ele é o Menino Jesus verdadeiro.

E a criança tão humana que é divina
É esta minha quotidiana vida de poeta,
E é porque ele anda sempre comigo que eu sou poeta sempre,
E que o meu mínimo olhar
Me enche de sensação,
E o mais pequeno som, seja do que for,
Parece falar comigo.

A Criança Nova que habita onde vivo
Dá-me uma mão a mim
E a outra a tudo que existe
E assim vamos os três pelo caminho que houver,
Saltando e cantando e rindo
E gozando o nosso segredo comum
Que é o de saber por toda a parte
Que não há mistério no mundo
E que tudo vale a pena.

A Criança Eterna acompanha-me sempre.
A direção do meu olhar é o seu dedo apontando.
O meu ouvido atento alegremente a todos os sons
São as cócegas que ele me faz, brincando, nas orelhas.

Damo-nos tão bem um com o outro
Na companhia de tudo
Que nunca pensamos um no outro,
Mas vivemos juntos e dois
Com um acordo íntimo
Como a mão direita e a esquerda.

Ao anoitecer brincamos as cinco pedrinhas
No degrau da porta de casa,
Graves como convém a um deus e a um poeta,
E como se cada pedra
Fosse todo um universo
E fosse por isso um grande perigo para ela
Deixá-la cair no chão.

Depois eu conto-lhe histórias das cousas só dos homens
E ele sorri, porque tudo é incrível.
Ri dos reis e dos que não são reis,
E tem pena de ouvir falar das guerras,
E dos comércios, e dos navios
Que ficam fumo no ar dos altos-mares.
Porque ele sabe que tudo isso falta àquela verdade
Que uma flor tem ao florescer
E que anda com a luz do sol
A variar os montes e os vales,
E a fazer doer nos olhos os muros caiados.

Depois ele adormece e eu deito-o.
Levo-o ao colo para dentro de casa
E deito-o, despindo-o lentamente
E como seguindo um ritual muito limpo
E todo materno até ele estar nu.

Ele dorme dentro da minha alma
E às vezes acorda de noite
E brinca com os meus sonhos.
Vira uns de pernas para o ar,
Põe uns em cima dos outros
E bate as palmas sozinho
Sorrindo para o meu sono.

Quando eu morrer, filhinho,
Seja eu a criança, o mais pequeno.
Pega-me tu ao colo
E leva-me para dentro da tua casa.
Despe o meu ser cansado e humano
E deita-me na tua cama.
E conta-me histórias, caso eu acorde,
Para eu tornar a adormecer.
E dá-me sonhos teus para eu brincar
Até que nasça qualquer dia
Que tu sabes qual é.

Esta é a história do meu Menino Jesus.
Por que razão que se perceba
Não há de ser ela mais verdadeira
Que tudo quanto os filósofos pensam
E tudo quanto as religiões ensinam?

Fernando Pessoa

1 Comments:

Anonymous Anônimo said...

Paulo, não achei o fragmento do Eliot que eu queria postar aqui (Lembra? Te disse que não tenho o livro...), mas encontrei este, que se segue, retirado do mesmo capítulo em que estava o primeiro.

Acho que servirá para explicar que o alargamento da narrativa sacra com o fim próprio de dessacralizá-la, pode sugerir tanto a resignificação dos dogmas, como no texto do Pessoa, quanto a temeridade na construção dos mesmos, hipótese do Eliot. Se erigir dogmas é um processo arriscado, suportar as distorções é uma sentença previamente sabida. O risco é pressuposto material da aposta. E a revelação é subjetiva, o que implica certa intocalibilade: a modificação da autoridade do TAO, só é possível a partir do próprio TAO.

O canto das rochas, T. S. Eliot:

“No princípio DEUS criou o mundo. Desolação e vazio.
Desolação e vazio. E trevas à face do abismo.
E quando já existiam homens, de múltiplas maneiras, atormentados, procuraram encaminhar-se para DEUS
Cegamente e em vão, porque o homem é uma coisa vã, e o homem sem DEUS é semente arrastada pelo vento:
levada em mil sentidos, sem encontrar lugar para pousar e germinar.
Iam atrás da luz e atrás das trevas, e a luz impelia-os para a luz e as trevas conduziam-nos às trevas,
Adorando serpentes ou árvores, adorando demônios para adorar alguma coisa:
clamando por vida para além da vida, por um êxtase que a carne não conhece.
Desolação e vazio. Desolação e vazio. E trevas à face do abismo.

E o Espírito pairava sobre as águas
E os homens que se voltaram para a luz e a luz reconheceu
Inventaram as Religiões Superiores; e as Religiões Superiores eram boas
E foram levando os homens de luz em luz, até ao conhecimento do Bem e do Mal.
Mas a luz deles estava sempre cercada e penetrada pelas trevas
Como na atmosfera dos mares cálidos irrompe o bafo mortal da Corrente do Ártico;
E quedaram-se em ponto morto, ponto morto animado por um vislumbre de vida,
E ficaram com a expressão envelhecida e murcha das crianças que morreram de fome.
Rodas de oração, culto dos mortos, renúncia deste mundo, práticas rituais de olvidado sentido
Nas areias inquietas fustigadas pelo vento, ou nos montes onde o vento não deixa a neve repousar.
Desolação e vazio. Desolação e vazio. E trevas à face do abismo."

9:56 AM  

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