domingo, janeiro 15, 2006

Carta a uma estátua de sal

Estátua de Sal,

Sei muito bem que cresceste, gota a gota, do sal de lágrimas. Lágrimas de amor, de tempo, de futuro. Lágrimas próprias de serem choradas. Sei que o que te sustenta é a dureza da pedra na qual você se aglomera, se cristaliza. Confesso que não sei, caso me fosse dada a oportunidade de escolher, se gostaria de ter conhecido-te. De toque, assim, salgaste minha boca e meus olhos. Estranho é que olhos de sal possam prender tanto olhos vivos. Estranha é a beleza singular do teu sorriso. Ali, a pedra torna-se mais translúcida, deixando ver-se uma garotinha, linda. Foi, e é, essa criança, o meu objeto de afeição.

Nada mais resta a ser dito sobre cada uma de tuas lágrimas genitoras (ou nada que não ultrapasse o cunho de “detalhe sórdido”). Não sei quem és, porém. É muito importante que entendas que tentei, mas não fui capaz de te aprender, te apreender. Olhar tempo suficiente no fundo dos teus olhos de sal. Talvez (e é aqui que aposto), não me tenha o permitido. Talvez eu tenha sido pego com as calças da soberba agarradas aos joelhos. O certo é que, ao final de duas metades de luas cheias, inda me falta teu gosto, pois, sal demais.

Humildemente, expresso aqui o que me inspira tua petrificação. De certo, a chuva certa não caiu ainda sobre ti. Quisera eu, com minhas mãos e meu Espírito, esculpir a vida dentro dessa pedra. Nada posso, porém. És, e enquanto quiseres, sal. Não perco a esperança, contudo, de ver vivas ainda essas formas rígidas e friáveis. A menina do sorriso, fugidia, não me deixa. Lembra-te que, para a água pura, o sal não é duro. Tens à tua frente, pois, duas opções: Sim, uma montanha de sal pode nascer, lágrima por lágrima. Não, você não precisa ser uma estátua de sal.

(Observação: não pensem que a estátua é fria e morta como uma escultura. Esta estátua anda, fala e, caso queira, salga teu sabor rápida e cautelosamente. Cuidado!)

quinta-feira, janeiro 05, 2006

O Invencível


Contam os antigos que haviam dois irmãos homens. Desde sempre muito fortes e sedentos de vida, tornaram-se, ambos, guerreiros. Desde sempre, também, se desafiaram e enfrentaram, algumas vezes ferozmente. Com o tempo, porém, mais próximos e companheiros, deixaram de agredir um ao outro e dedicaram-se às mais diversas coisas, incluindo-se as Artes de Combate.


Fang Shii Ne era alto, tinha braços e pernas fortes. Sua falta de agilidade se compensava por um poder de ataque esmagador e uma defesa muito forte. Procurava ocupar-se das lutas de maior contato corporal, como os tailandeses e indianos. Era como um leão que dá um salto sobre a vítima, agarra-lhe o pescoço com os dentes e espera, às vezes por muitos minutos, a vítima sucumbir à asfixia. Em pé, seus punhos eram tão firmes que quase indefensáveis e seus chutes muito fortes, dirigidos quase sempre às pernas do adversário. Era conhecido como O Invencível.
Fang Pow Tzé prestava-se mais de sua agilidade e disciplina. Portando um corpo robusto porém pequeno, precisava ser rápido, atento e preciso em seus ataques. Interessava-se mais pelas lutas dos Mosteiros (como o de Shaolin), do deserto e dos soldados do Japão, especialmente aqueles espadachins conhecidos como Bushi. Era muito flexível e ágil, embora seus braços e pernas não fossem muito poderosos. Compensava-se com técnica e aprendeu a usar o seu Chi para fortalecer e guiar os golpes. Concentrava-se absurdamente em combate, mantendo sua mente forte e minando as defesas das mentes dos adversários. Era conhecido como A Águia.


Ao longo de toda a vida, mesmo após dominarem todo o seu potencial de combate, enfrentavam-se. Faziam disso algo sério, como uma atividade entre irmãos. Travaram batalhas memoráveis! Em umas, Pow Tzé conseguiu derrotar seu oponente. Na maioria, contudo, Shii Ne era quem saía vitorioso. Seus ataques maciços seguiam-se sempre de enfrentamentos no chão. Ali, imobilizava os membros do adversário, atacava-o e fazia com que ele se rendesse ao cansaço, à dor e a frustração.
Num desses episódios, durante o treinamento, o irmão mais fraco esforçou-se em desenvolver técnicas para evitar e neutralizar as investidas do maior, sempre com o intuito de transportar o combate para o chão. Quando teve oportunidade, ao enfrentar o irmão, o mais fraco lutava a uma maior distância e desferia golpes rápidos e certeiros, retornando em seguida para a distância. Dessa maneira, tornou-se imbatível para o outro corpulento, que perdia as pelejas antes de ter a oportunidade de atacar com toda a sua força. Ambos foram para guerras e fizeram um pacto: sua próxima luta seria a última e definitiva. Quem vencesse seria o melhor guerreiro para a posteridade.


Algum tempo depois de retornaram da guerra, e com suas energias e ferimentos recompostos, marcaram data para a tão aguardada batalha final. Dirigiram-se ao pátio de um templo, onde encontraram alunos, familiares, amigos e inimigos reunidos para assistir. Cumprida sua preparação e vestimenta, dirigiram-se ao centro do pátio. Lá, aguardava-os um velho mestre que seria o árbitro da intenta. Avistou-se então Shii Ne, quase nu, como os gregos. Usava apenas uma leve armadura que cobria-lhe apenas os punhos, a pelve e os tornozelos. Seguiu-o o irmão, Pow Tzé. Sua armadura era uma leve roupa de seda muito preta, com acessórios mais rígidos nos punhos, pelve e pés. Num salto rapidíssimo o mais fraco iniciou o combate.


Por mais rápidos que fossem os ataques do menor, a força e resistência do maior neutralizava-os. Lutaram apenas em pé, condição imposta pelas técnicas de esquiva desenvolvidas por Pow Tzé. Toda a movimentação de esquivas e ataques furtivos, no entanto, começando a cansar seu corpo, tornou-se cada vez menos feroz. O grande, percebendo isso, embora também estivesse muito cansado, uniu todas as forças que tinha em golpes pesadíssimos contra o pequeno. Ao final, estavam afastados e ofegantes. O menor planejou seu último bote, forte e certeiro contra o abdome do irmão.


Ao longo do movimento, por ocasião de afastar qualquer resistência do outro guerreiro, recebeu um bloqueio que desviou seu curso, colocando-o numa situação difícil: sua única possibilidade de vencer seria utilizar-se de um golpe fatal. Não conseguindo suportar a possibilidade de tirar a vida de seu irmão, perdeu o controle e foi agarrado e derrubado por Shii Ne. No chão, o mais forte arrasou seu oponente, deixando-o totalmente impossibilitado de continuar a tentar qualquer coisa que fosse. Após ainda alguma resistência do menor, venceu.


Assim contam os velhos. Dizem que Fang Shii Ne foi o maior guerreiro de todos os tempos. Seu maior oponente, o irmão, ele derrotou honradamente, assim como ficou conhecida a honra do irmão perdedor e de má sorte. Até hoje, entre os mais idosos mestres e estudiosos da História, Shii Ne é lembrado como O Invencível.

Ao meu irmão.